segunda-feira, 31 de agosto de 2020

VENTO SECO (2020) de "Daniel Nolasco"


 "Daniel Nolasco surpreende em filme corajoso sobre sentimentos homoafetivos, sexualidade e desejos no interior de Goiás" 

    O cineasta goiano Daniel Nolasco, diretor de diversos curtas e também dos documentários Paulistas (2018) e Mr. Leather (2019), apresenta um filme Queer sem medo de sua representação sexual explícita, onde realismo e artificialismo se misturam em uma das produções mais quentes do cinema gay nacional, tanto que o filme segue carreira nos principais festivais gays do mundo além de sua incrível estréia no Festival de Berlim deste ano. O protagonista Sandro (Leandro Faria Lelo) consegue expressar nuances interessantes de seu desejo sexual e também de seus sentimentos, em vários momentos eles precisam ser sucumbidos diante a situações comuns do desejo sexual masculino, muitas vezes escondido ou proibido, mas sempre muito acessível. É um filme bastante liberal e despreendido de qualquer censura, a câmera nervosa do diretor não deixa de mostrar virilhas em close-up, corpos nús e sexo explícito, tudo dentro do contexto da obra e para importante percepção do personagem e também do universo gay masculino. O desejo sexual parece onipresente com ele e isso representa o foco principal de sua jornada, sem tempo para questionamentos e bastante sentimental, é um filme sobre emoções. 


    Na trama, Sandro trabalha em uma fábrica agrícola e seus desejos estão cada vez mais intensos por um colega de trabalho e por suas aventuras sexuais. Ele é constantemente atraído por corpos masculinos e se perde em fantasias fetichistas em meio a solidão de uma vida no interior de Goiás. A previsão do tempo é constantemente mostrada no filme, em que a probabilidade de chuva é sempre 0%. O clima quente do cerrado brasileiro está sempre fervendo e o desejo físico nunca é completamente descarregado. Não importa se o personagem está tomando banho em um clube, trabalhando ou apenas passando na rua, os homens sempre vão exalar o calor da sexualidade aflorada e da energia sexual, sempre deixando algo no ar. Essa sensação é expressa de maneira descomplicada, além de seus sonhos eróticos e seus feitiches. Embora Sandro tenha um caso apaixonado com o colega de trabalho Ricardo (Allan Jacinto Santana), sua fantasia obsessiva e não realizada com Maicon (Rafael Theophilo) talvez seja a sua confusão sentimental e o principal conflito da trama.


    A explosão de erotismo de Vento Seco é ilustrada em cores saturadas e luzes neon, em certos momentos sua intensidade se choca com a pornografia, nada que a ternura de Sandro não consiga reverter tal aspecto para o lado vívido do personagem. As cenas de sexo são também um afronte a todo conservadorismo e tabu sobre o corpo masculino, a nudez feminina sempre se fez presente no cinema controlada por diretores héteros e suas musas, a nudez masculina é quase sempre estigmatizada e esse rompimento de padrões estéticos é bastante válido como forma de arte. Nolasco é bem-sucedido na direção escolhida, a ponte entre sexualidade e identidade funciona de forma grata e bonita no filme. Alguns personagens ainda poderiam render muito mais na trama, como a trans Paula (Renata Carvalho) em sua afetuosa amizade com Sandro, em um filme que surpreende pela naturalidade de seus argumentos de vínculos. Os fetiches do universo gay são transportados para o ambiente rural em um choque de realidade com uma incrível sintonia de uma ótima produção artística. O cinema LGBTQ+ brasileiro segue um caminho cada vez mais intenso e interessante com mais uma produção de destaque. O GAY LONGE DAS METRÓPOLES.


Não lançado no Brasil até o momento e exibido em Festivais Internacionais. Produzido pela Panaceia Filmes e distribuição da Olhar Distribuidora.

Hype: ÓTIMO (Nota: 8,0)

terça-feira, 11 de agosto de 2020

AMULETO (2020) - "Amulet" de "Romola Garai"


"Terror acerta no estilo próprio, bloqueia expectativas e entrega um inteligente exemplar do gênero em estréia promissora de Garai na direção." 

    A estreia na direção da atriz que virou cineasta Romola Garai é uma interessante composição de terror com toque feminista e inspirado em outros títulos que fazem a linha psicológica/dramática, o novo frisson do gênero. Depois de chamar a atenção em Sundance com um curta dramático em 2012, Garai decidiu apresentar um suspense com intenções enigmáticas que certamente vai incomodar quem espera algo óbvio, com movimentos inesperadamente violentos, trilha sonora bizarra e um elenco afiado. A produção se torna uma pequena surpresa e a cineasta eventualmente junta mistérios de passado e presente em uma construção que parece confusa e arrastada até tudo se encaixar de maneira aterrorizante e contemplativa.


   Na trama, Tomaz (Alec Secareanu) é um ex-soldado estrangeiro vivendo em circunstâncias tensas em Londres. Assombrado por seu passado, é oferecido a ele um lugar para ficar em uma casa decadente e claustrofóbica, habitada por uma jovem enigmática e sua mãe moribunda. Quando ele começa a se apaixonar por sua nova companheira, Tomaz não pode ignorar sua suspeita de que algo insidioso também pode estar vivendo ao lado deles. A história é uma jornada que questiona os protagonistas e seus motivos. Tomaz é uma figura estável e Magda, uma vítima indefesa de sua mãe que certamente é controlada por alguma força do mal misteriosa. Conforme o filme desliza entre o antes e o depois, os horrores de Tomaz em seu tempo passado na floresta, onde o mesmo encontra um estranho amuleto esculpido, se torna a possível chave desse mistério.


    Garai desenvolve bem a direção mesmo deixando o filme com uma pegada inicial lenta, tudo flui na condução ao clímax, intenso para um filme que deseja seu próprio caminho, ainda que se aproveite das principais influências atuais do gênero. A composição dos exteriores modernos de Londres tem aparência realista de um drama contemporâneo, os flashbacks tem uma sensação de ilusão e as cenas nos dias atuais na casa (que compõem a maior parte do filme) tem um ar de terror clássico inglês. A técnica de encontrar ângulos alternativos expõe uma sensação de sentimento perturbador e também paranóico contribuindo para a sensação de desconforto. Destaque para as criações sobrenaturais que compõem a fotografia mórbida e o terror dramático bem conduzido. Transitando em uma quantidade boa de acertos e se afastando do fluxo de qualquer thriller comercial, seu caminho que poderia ser banal se mostra um exercício sobrenatural assustadoramente moderno. MACABRO.


Hype: BOM (Nota: 7,5

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

UMA MULHER ALTA (2019) "Beanpole" de "Kantermir Balagov"


"Imersão feminina no pós guerra da Rússia se revela uma obra prima forte de um cinema vívido e deslumbrante." 

   O segundo longa-metragem do promissor diretor russo de 28 anos, Kantemir Balágov, ex-aluno do diretor Aleksándr Sokúrov, é também o segundo a ser premiado na Mostra "Un Certain Regard" do Festival de Cannes e teve carreira extensa e de destaque em diversos festivais pelo mundo. Longe de obviedades, a história se torna um drama brutal e silencioso, onde o jovem realizador decidiu tematizar a participação feminina na Segunda Guerra após ler “A Guerra Não tem Rosto de Mulher” (2013), de "Svetlana Aleksiévitch", obra literária que apresenta relatos íntimos de mulheres soviéticas que viveram o conflito. O filme se passa nos meses seguintes a guerra e seu retrato é sobre traumas e sequelas gerados e que permanecem ao longo de difíceis períodos de transição. O filme é principalmente sobre a complexidade de relações que oscilam entre amizade, amor e abusos. Uma Mulher Alta consegue subverter a velha convenção do cinema de guerra com personagens femininas protagonizando e movendo a história, cabe aos homens papeis secundários e fragilizados em uma produção caprichada e bastante elegante.


   Na trama, acompanhamos o trabalho de Íya (Viktória Mirochnitchênko) como enfermeira em um hospital de Leningrado pós segunda guerra, que sofre com os mortos e moribundos, ela está sujeita a ataques repentinos de uma paralisia. Ela cuida ainda do filho de Masha (Vassilíssa Perelyguina), sua companheira de front. Uma crise da doença de Íya, porém, terá consequências trágicas que desencadeiam mudanças na sua relação com sua amiga. Mesmo com o fim da guerra, nem todas as sequelas se apagaram. O gemido sufocado da jovem Íya, que periodicamente entra em um estado parasilisante, são os efeitos colaterais da dor constante da batalha e do vazio por dentro da protagonista, chamada de “varapau" e que no Brasil ganhou uma descrição elegante do apelido, "Uma Mulher Alta". Mesmo que não evolua drasticamente em seus argumentos, não se engane com o aspecto calculista da obra e como suas personagens chegam em nuances que fogem do senso comum da guerra ou mesmo, deixam claro que o foco são suas visões femininas, ainda que não tragam o conforto que esperamos.


    Mesmo em uma época que está sujeita a novas regras de contabilidade moral e os bondes atropelam suicidas como buracos, é difícil não encarar, por exemplo, uma fala sobre constituir uma “família normal" como uma ironia dirigida ao mundo de hoje e a certas padronizações disfuncionais que vão sendo estabelecidas. O argumento da história é tão forte que talvez não comova quem ainda se perde na guerra como confronto e batalha deixando de lado as consequências. A produção destaca também sua fotografia marcante em tons de verde assinada por "Ksênia Seredá", de 24 anos, além da trilha musical discreta que  ganha importância dramática, os ruídos e sons do ambiente ajudam a compor a sólida composição da melancolia retratada. A fachada de filme lento se desmorona na tensão de um mundo quebrado, mas que continua girando em uma inércia purgatorial. Uma Mulher Alta demora para descongelar de seu impacto emocional, atrasa o poder da história até seus momentos finais onde uma cena dolorosa após a outra demonstra o controle que essas mulheres possuem sobre si e assumem todas as maneiras pelas quais o amor pode ser mais frio do que a morte. OBRA PRIMA.



Hype: ÓTIMO (Nota: 9)

Onde ver: Streaming MUBI